A história do padre que foi ao mesmo tempo jogador de futebol profissional no Brasil
O padre espanhol Carlos Bascaran atraiu mídia para a Ferroviária de João Neiva (ES) nos anos 70
Essa história é tão única que, com o perdão do trocadilho, até Deus duvida. No futebol brasileiro já houve um padre que conciliou a atividade religiosa com uma carreira profissional nos gramados. Foi o Padre Carlos Bascaran, que nos anos 70 jogou pela Ferroviária de João Neiva, do Espírito Santo.
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Como tudo começou
Nascido na Espanha, desde cedo Carlos teve o futebol ligado à sua vida. Ele atuou nas categorias de base do Vetusta, da cidade de Oviedo, dos 16 aos 18 anos. Depois, jogou pela universidade onde estudava música.
Aos 21, o jovem entrou para a Congregação dos Missionários Combonianos. Transferido para Portugal, ele ainda chegou a jogar pelo Futebol Clube da Maia, time amador do distrito do Porto, mas foi preciso abandonar a bola.
Por ironia do destino, porém, foi justamente o sacerdócio que renderia ao padre a oportunidade de realizar o sonho de jogar futebol profissionalmente.
Essa história começa quando Carlos é enviado pela congregação ao Brasil, aos 29 anos, em 1970. O destino era a cidade de João Neiva, a 80 km de Vitória, capital capixaba.
Quatro anos depois, futebol e fé fizeram sua tabelinha. “Por influência de outro padre chamado Emílio, que também tentava uma vaga na Ferroviária, Carlos foi levado e se tornou jogador do time”, conta Leonardo Queiroz, pesquisador da Ferroviária de João Neiva.
Acidente da Ferroviária
Antes da chegada do padre espanhol ao clube, a Ferroviária havia sofrido um grave acidente com seu ônibus, em 1969, que vitimou alguns atletas.
“Esse fato desmantelou o elenco, pois, além das mortes, vários jogadores foram hospitalizados. A federação adiou em duas semanas o campeonato para que o time se organizasse. Mesmo assim, a Ferroviária já não era mais competitiva”, registra Sebastião Netto, historiador da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
Desfalcada, a equipe foi perdendo relevância no Campeonato Capixaba. “Aí, chegou o Padre Carlos…”, ressalta Sebastião Netto.
Com o reforço, anunciado em 1974, a Ferroviária mudou de ares. A torcida apreciou a novidade de ter um padre no time, e abraçou o clube nos jogos em casa.
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A Ferroviária ainda se curava das feridas de trágico acidente (Foto: Reprodução)
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A Ferroviária ainda se curava das feridas de trágico acidente (Foto: Reprodução)
Repercussão na mídia
Se já seria curioso um padre atuar profissionalmente por um clube de futebol hoje em dia, imagine há meio século. A contratação do Padre Carlos pela Ferroviária gerou muitas manchetes. O alvoroço em torno disso foi benéfico, tanto para a cidade de João Neiva quanto para o futebol capixaba.
“Após um amistoso contra o Vasco da Gama, que foi transmitido pela Rádio Globo, do Rio de Janeiro, começou a repercussão. Na época, teve matéria no Fantástico, no Globo Esporte e na revista Placar. Uma das principais manchetes foi: ‘Padre Carlos; bom de missa e bom de bola’”, relembra Sebastião Netto.
“Na época, teve matéria no Fantástico, no Globo Esporte e na revista Placar. Uma das principais manchetes foi: ‘Padre Carlos; bom de missa e bom de bola'”. (Sebastião Netto)
Características em campo
Carlos Bascaran não chegou ao clube como uma ação de marketing. Mesmo iniciando a carreira profissional aos 33 anos, o jogador era titular indiscutível.
“O missionário era um meio-campo muito habilidoso, bom de drible, forte, craque do time. Ele não perdia divididas. Inclusive, os adversários reclamavam que a canela dele era muito dura”, destaca Leonardo Queiroz, pesquisador da Ferroviária.
O religioso recebia um salário simbólico para representar o clube. “A maioria dos atletas eram contratados como funcionários da Vale do Rio Doce. Eles trabalhavam nas oficinas da empresa em João Neiva”, evidencia Sebastião Netto.
O jogo mais marcante da trajetória do Padre Carlos, que adorava vestir a camisa 13, foi nas semifinais do Capixaba de 1974, quando fez o gol de honra da equipe na eliminação para a Desportiva Ferroviária, tradicional time do estado.
A atuação motivou a Desportiva a contratá-lo em seguida, e já com ele em seu elenco foi campeã estadual invicta.
Batina e chuteiras
Apesar da rotina de treinos e jogos, Padre Carlos não deixava de lado a missão religiosa.
“Durante a semana ele fazia os trabalhos na paróquia e, em alguns dias, treinava com o time da Ferroviária. Aos sábados, realizava missas, casamentos e batizados. Aos domingos, fazia a missa dominical e se juntava ao elenco para a partida que seria realizada à tarde”, explica Sebastião Netto. Quando viajava com o time, o padre era liberado na paróquia.
“O missionário era um meio-campo muito habilidoso, bom de drible, forte, craque do time”. (Leonardo Queiroz, pesquisador da Ferroviária)
Hora de pendurar as chuteiras
A cidade de Cariacica, sede da Desportiva Ferroviária, seu segundo clube no Brasil, está localizada a 90 km de João Neiva, onde Padre Carlos trabalhava.
Ficou ainda mais difícil conciliar o futebol e a vocação religiosa quando o missionário foi transferido para outras duas cidades capixabas, Nova Venécia e Ecoporanga, distantes 260 km e 310 km de Cariacica, respectivamente. Assim, em 1975, chegou ao fim sua curta carreira profissional nos gramados.
Evangelização através do futebol
Posteriormente, Padre Carlos passou por várias cidades do Norte e Nordeste, chegando à cidade de Santa Rita, na Paraíba, em 2010. “Ele sempre se deu muito bem em unir os jovens através do esporte”, elogia Fratel D’aiuto, amigo do religioso.
Espanhol de nascimento e brasileiro de coração, Padre Carlos dividia a paixão pelo Real Madrid e o Flamengo. E chegou a acompanhar o título de sua seleção na Copa do Mundo de 2010, na África do Sul.
“Ele sempre se deu muito bem em unir os jovens através do esporte”. (Fratel D’aiuto)
“Na congregação, Carlos era conhecido como jogador de futebol. Passava a maior parte do tempo livre vendo futebol na TV. Ele adorava a célebre frase de Zagallo, ‘Vocês vão ter que me engolir’, e a repetiu muitas vezes quando a Espanha venceu a Copa”, relata Fratel.
Dez anos depois de chegar à Paraíba, Padre Carlos faleceu, vítima Covid-19, em 2020, bem no início da pandemia, aos 79 anos. Partia com ele uma história que merecia ter sido mais vezes contada.
Curiosidades:
– A Associação Atlética Ferroviária, de João Neiva, foi fundada em 1968 e disputou o Campeonato Capixaba nos anos 70. Sua última competição profissional foi a 2ª divisão estadual de 1993. Hoje, o time é amador.
– O atacante Sandro Sotilli, maior artilheiro do Campeonato Gaúcho, com 111 gols, foi seminarista na juventude e quase se tornou padre.
– Em 12 de março de 1978, o Tupi de Crissiumal, do interior gaúcho, disputou um amistoso contra o Grêmio, e no 2º tempo colocou em campo um religioso, o Padre Chico. Os gremistas venceram por 1 a 0.
> Reportagem produzida por Yuri de Melo, com edição de Rafael Luis Azevedo, do Verminosos por Futebol.
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5 respostas para “A história do padre que foi ao mesmo tempo jogador de futebol profissional no Brasil”
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Papai, Gilson Félix e Zilson Félix nome de batismo, fez a reportagem com o padre Carlos para a Revista Placar. Show 🙏🙏🙏
Joguei contra ele três vezes. Era um craque. E “chegava junto”. O tornozelo da gente sofria com ele. Rssss
Cara vocês são demais! Obrigado por nos brindar com essa belíssima e curiosa historia!
Valeu, Fabiano! Abraço!
Parabéns, Yuri show 👏👏👏