Futebol para Todos: Projeto leva pessoas em situação de rua a jogos no Castelão
O projeto + Inclusão, da Prefeitura de Fortaleza, leva pessoas em situação de rua a passeios
Por Rafael Luis Azevedo e Larissa Cavalcante
— Isso aí vai ficar gravado em mim. Se eu morresse, morria feliz.
Foi a experiência de uma vida para Cláudio. Junto a outros iguais, ele teve uma noite memorável. Era a oportunidade de vibrar num Ceará x Flamengo no Castelão pelo Campeonato Brasileiro. Quem sabe o que é a emoção de um estádio lotado compreende seus olhos marejados. Ainda mais no caso dele, para quem um ingresso é luxo inalcançável.
Veja o doc #FutebolParaTodos e o restante da reportagem em texto:
Inclusão através do futebol
Cláudio Oliveira, de 50 anos, foi um dos beneficiados pelo programa + Inclusão, da Secretaria Municipal dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS), da Prefeitura de Fortaleza. Ao lado de outros três homens em situação de rua, ele foi ao jogo do dia 25 de agosto. Ganhou ingresso e um lugar privilegiado no setor especial do estádio.
“Minha rotina é sempre muito igual. Um dia atrás do outro eu tô na praça, com a Lilica e o Bob (seus cachorros), vendo as pessoas passarem”, descreve Cláudio, que fez de uma praça do bairro de Fátima a sua morada. “Hoje não, foi diferente. Nunca pensei que eu voltaria a entrar no Castelão. Obrigado”, agradece, sem saber a quem agradecer.
Que projeto é esse?
A gratidão de Cláudio reconhece quem idealizou o + Inclusão. Lançado em 2018, o projeto proporciona um dia de lazer para pessoas em situação de rua – um dos grupos atendidos pela SDHDS. São passeios para piqueniques em parques, peças de teatro e jogos de futebol. Coisas tão simples para tantos, porém tão especiais para eles.
Essas experiências são transformadoras não somente para os beneficiados. “São impressionantes os depoimentos que a gente recebe. Um deles, uma vez, disse que estava feliz porque nunca tinha comido batatinha frita. Não tem como não se sensibilizar ao ouvir algo assim”, ilustra o médico Elpídio Nogueira, secretário da SDHDS.
A praça como morada
Cláudio, natural de Fortaleza, é reconhecido no bairro de Fátima. Já há muitos anos, vive na praça dos Expedicionários. Sua casa é uma barraca de camping de 4 m², que ele divide com seus dois cachorros.
O destino dele foi escrito lá atrás, ao ser trocado na maternidade. Com dois anos, as duas famílias desfizeram o engano. A contragosto de sua mãe biológica, que preferia a criança branquinha. “Minha mãe nunca me quis como filho. Ela nunca gostou de negro, racista”, lamenta.
“Minha mãe nunca me quis como filho. Ela nunca gostou de negro, racista”. (Cláudio Oliveira)
Sentindo-se rejeitado, Cláudio partiu para São Paulo duas vezes, onde teve diferentes trabalhos. No retorno definitivo, já com o pai morto, a falta de laços familiares o empurrou para as ruas.
Já são três décadas desde então. “Comecei na praça da Estação, passei pela José de Alencar, Praça do Ferreira, Praça dos Leões, Sé, Praça da Bandeira, 5º Batalhão, a praça perto do jornal O Povo, Colégio Militar… Aí, vim pra cá”, lista onde ficou.
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Companhia da solidão
Foi nas ruas onde Cláudio conheceu a companheira de sempre. Depois de 22 anos juntos, Ana Paula morreu subitamente em 2016. Sem documentos dela, foi preciso uma peregrinação por assistentes sociais e defensores públicos para que pudesse reclamar o corpo. “Quase ela foi enterrada como indigente”.
Solitário, Cláudio entregou-se ao álcool. “Minha vida virou de cabeça pra baixo”, conta. Recuperado da perda, desde janeiro ele não bebe mais, assegura. “Foi a melhor coisa que eu fiz”, admite o homem, que ocupa a mente varrendo a praça diariamente. “Isso é bom, medita”, explica.
Do Governo Federal, Cláudio recebe cerca de R$ 90 mensais, garantidos pelo programa Bolsa Família. Porém, desde que teve seu cartão roubado, no início do ano, ele ficou sem o benefício. Aquela era sua única renda, somada a alimentos deixados na praça. “Muita gente me ajuda”, alegra-se.
O que leva às ruas
A história de Cláudio é o roteiro de muitos que dormem em calçadas e praças de Fortaleza. O último levantamento elaborado pela Prefeitura, em 2015, indicou a existência de 1.718 pessoas em situação de rua.
Entre as causas principais, aponta a Secretaria Municipal dos Direitos Humanos, estão o rompimento de laços familiares por questões diversas, como uso de drogas e dependência do álcool, e também o desemprego.
“Recentemente, um motivo a mais passou a levar gente para as ruas: as pessoas expulsas de casa por facções criminosas”, preocupa-se Elpídio Nogueira. Consultados pelo Verminosos por Futebol, a Secretaria de Segurança Pública do Ceará e o Ministério Público Estadual não informaram se possuem estatística sobre isso.
“Recentemente, um motivo a mais passou a levar gente para as ruas: as pessoas expulsas de casa por facções criminosas”. (Elpídio Nogueira)
A problemática da população em situação de rua, obviamente, não está restrita a Fortaleza. O Conselho Nacional de Direitos Humanos estima a existência de 400 mil pessoas nessas condições no país. Na capital cearense, a SDHDS crê que o número já é significativamente maior do que o de quatro anos atrás.
Uma nova contagem deveria ter sido realizada em 2017, mas o Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS) orientou que a Prefeitura aguardasse o próximo censo nacional do IBGE, previsto para 2020, a fim de evitar sobreposição de gastos.
Ministério Público entra na causa
No dia 29 de agosto, o Ministério Público expediu uma recomendação à prefeitura, à SDHDS e ao CMAS para que seja realizado um censo de pessoas em situação de rua. “É notável que a ausência de ferramentas específicas para a quantificação dessa população contribui para perpetuar a relação de exclusão, invisibilidade e negligência”, destaca a promotora de Justiça Giovana de Melo.
A prefeitura recebeu prazo de 30 dias para prestar informações, com apresentação de cronograma de realização do censo. A omissão poderá caracterizar, segundo o MP, ato de improbidade administrativa.
Um dia de alegria
Fã de futebol e torcedor do Ferroviário, que disputa a Série C, Cláudio acompanha o noticiário esportivo por seu radinho de pilha. Ele não ia ao Castelão havia muitos anos. “Fui com meu pai. Agora ele tá diferente, bem mais bonito”, elogia.
Os ingressos entregues pelo + Inclusão são uma cortesia da Secretaria do Esporte e Juventude (Sejuv), do Governo do Estado, parceira no projeto. No jogo do Ceará, cada um daquele setor custava R$ 60 – 2/3 da renda mensal que o homem recebia quando possuía o cartão do Bolsa Família.
“Isso aí vai ficar gravado em mim. Se eu morresse, morria feliz”. (Cláudio Oliveira)
Parecia ser algo tão fora de realidade que Cláudio passou boa parte do início do jogo estático, sem expressões, como se ali não fosse seu lugar. Quando esteve mais à vontade, bateu palmas acima da cabeça, acenou para o mascote do Vovô, sorriu, posou para fotos da reportagem…
“Quem são eles, são ex-jogadores?”, perguntou um vizinho de cadeira. “São moradores de rua”, cochichei. “Oh meu Deus!”, ele reagiu. “Pelo menos uma vez, estamos garantindo que essas pessoas se sintam incluídas na sociedade”, define Elpídio. Não tem gol mais bonito.
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