Renner Vive: Projeto mantém viva a paixão por clube gaúcho extinto em 1959
O Renner passou como um cometa pelo futebol de Porto Alegre, e acabou por decisão de seu proprietário
Mais de sessenta anos depois de sua extinção, um clube de futebol continua batendo no coração de quem torceu por ele. É a história do Grêmio Esportivo Renner, de Porto Alegre, que desapareceu em 1959, mas que tem o privilégio de seguir lembrado. Em parte, graças ao projeto Renner Vive, mantido por um torcedor que viveu aqueles tempos.
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Que clube foi esse?
O Renner foi fundado em 1931, como um grêmio recreativo para os trabalhadores das fábricas e das lojas do grupo Renner. A ideia do industrial Antônio Jacob Renner, o AJ Renner, um dos empresários mais poderosos do Rio Grande do Sul, era usar o futebol e outras modalidades para garantir a saúde de seus funcionários.
Logo o Renner adquiriu relativo sucesso esportivo. No futebol, chegou a rivalizar em alguns momentos com Grêmio e Internacional – as forças dos gramados de Porto Alegre desde o início do século.
De 1919 a 1960, o Campeonato Gaúcho era disputado por regiões, com uma competição eliminatória entre os campeões de diferentes cidades. Duas vezes, o Renner foi campeão municipal, classificando-se para o Estadual – em 1938 e 1954. Na segunda ocasião, tornou-se campeão gaúcho, seu maior feito.
A equipe jogava no Tiradentes, estádio de 10 mil lugares situado no bairro de Navegantes, no 4º Distrito, a antiga região industrial de Porto Alegre, na zona norte da cidade. Ficava ao lado da sede do grupo Renner – sim, proprietário das Lojas Renner e das Tintas Renner.
Uma curiosidade: o apelido do campo era Waterloo – uma referência ao local onde Napoleão teve sua derrota derradeira, na atual Bélgica, em 1815. No Tiradentes, dizia-se que o Renner vencia a todos, até a dupla de grandes da cidade. Do exagero veio a alcunha.
Em seu melhor momento, porém, AJ Renner abriu mão do empreendimento esportivo. Em 1959, ele decidiu pelo fechamento do departamento de futebol do Renner. A gente volta a esse desfecho mais à frente.
Resgate do Renner
O arquiteto Luis Carlos Macchi tinha 11 anos em 1959. A paixão pelo Renner surgiu cedo, graças a Antônio Macchi, tio que era diretor de patrimônio da empresa e do time, de quem também foi presidente entre 1940 e 1942.
“Nasci rennista. Fui mascote de 1953 a 1955, peguei o período em que o clube foi campeão da cidade e depois do estado”, relembra Macchi, hoje com 73 anos. O time estava mesmo enraizado na família: o último goleiro do Renner, Raul Kinnemann, casou com sua prima Neusa, filha de Antônio.
Com a morte do tio, Macchi herdou todo o material sobre o time que ele armazenava. Na virada dos anos 2000, o arquiteto resolveu fazer encontros anuais com ex-jogadores do Renner, sempre no aniversário de fundação do clube. Na decoração, muitas daquelas fotos.
“O Renner Vive nasceu do resgate da história daquele cometa que passou pelo futebol gaúcho”, conta o arquiteto, um dos responsáveis pelas matérias publicadas no site do projeto.
Os ídolos do Renner
Os jogadores do Renner eram também funcionários das empresas do grupo Renner. “Eles assinavam dois contratos, a não ser que não quisessem”, pontua Macchi.
Entre os jogadores-operários, estiveram três rostos conhecidos do futebol brasileiro, todos integrantes do time campeão gaúcho de 1954.
“Os jogadores do Renner assinavam dois contratos, a não ser que não quisessem”. (Luis Carlos Macchi)
Revelado no clube, o atacante Breno Mello transferiu-se para o Fluminense, e depois ficou famoso ao virar ator. Nas telonas, estrelou “Orfeu Negro”, filme ítalo-franco-brasileiro de 1959, vencedor do Festival de Cannes e do Oscar de melhor filme estrangeiro.
O meia Ênio Andrade era outro ídolo do time, revelado pelo São José, também de Porto Alegre. Foi um bom jogador, mas ficou celebrado mesmo como treinador, sendo tricampeão brasileiro por Internacional (1979), Grêmio (1981) e Coritiba (1985).
Já o mais famoso foi o goleiro Valdir de Moraes, que defendeu o Renner desde os juvenis, em 1947, até 1958. Depois, tornou-se um dos maiores goleiros da história do Palmeiras, onde atuou de 1958 a 1968. “Foi ele quem inaugurou, no Brasil, a profissão de treinador de goleiros”, registra Macchi.
O nascimento do memorial
Valdir de Moraes, mesmo celebrado como um dos maiores jogadores de um dos principais clubes do país, nunca perdeu o vínculo com o Renner. Ele morreu no início de 2020, aos 88 anos.
Raul Kinnemann, goleiro que sucedera Valdir no time gaúcho, foi quem avisou Macchi sobre a perda. De imediato, o arquiteto, que se encontrava em Santa Catarina, enviou ao velório em Porto Alegre uma bandeira do Renner. Modelo oficial do título de 1954.
Sabendo da relação de Macchi com o clube, a viúva de Valdir o presenteou com um tesouro: todo um arquivo histórico do período em que o goleiro defendera o Renner. “Ele recortava as notícias de todos os jogos e colava em álbuns. Duvido que algum jogador do Brasil tenha feito coisa igual”, elogia o torcedor.
O material que herdou, do tio e de Valdir, foi distribuído numa residência de Macchi, no bairro Floresta, no 4º Distrito de Porto Alegre. Uma espécie de memorial do Renner, pertinho de onde ficava o clube.
Nos últimos anos, o Renner já ganhou um filme, “Papão de 54” (2005), dirigido por Alexandre Derlam, e um livro, “Uma Vez para Sempre” (2009), de Francisco Michielin. Macchi pretende lançar seu livro também, ainda sem nome definido. Talvez no aniversário de 90 anos do time, em julho de 2021.
“Tenho que contar essa história. O Renner foi um fenômeno, pela maneira como se formou, como cresceu e como inesperadamente acabou, por decisão do presidente honorário, no momento em que se preparava para sua primeira excursão internacional, para a Europa”, aponta.
Tabelinha empresa-clube
Fundado como espaço de recreação para funcionários, o Renner se tornou uma plataforma de propaganda para o industrial AJ Renner. Em 1953, por exemplo, o time fez uma excursão de dois meses pelo Norte e Nordeste. A intenção era divulgar a marca e estreitar laços.
“Nessa viagem, foram os jogadores e toda a área comercial da empresa, que buscava se expandir pelo Brasil”, resgata Macchi. As lojas Renner acabaram se desvinculando do grupo em 1965. Mas, se hoje ela é uma das empresas de moda mais presentes no país, com mais de 600 unidades, deve seu pontapé também ao futebol.
Em Porto Alegre, os cerca de 5 mil trabalhadores do grupo Renner, situado a duas quadras do estádio Tiradentes, tinham direito a carteirinhas de sócio-torcedor. Assim, podiam ver jogos a preços módicos.
“Casados e com filhos, os funcionários garantiam um público médio de 8 mil a 10 mil torcedores nos jogos do Renner. Os trabalhadores, gremistas ou colorados, viravam simpatizantes rennistas”, relata Macchi. Futebol e empresa ajudavam-se mutuamente.
O jogo ficou caro
É uma história parecida a do Bangu, fundado pela Fábrica de Tecidos Bangu, no subúrbio do Rio de Janeiro. Até as camisas eram iguais, com listras verticais vermelhas e brancas. “Os jogadores de ambos os times eram operários têxteis. O Bangu foi um espelho para os diretores do Renner”, sinaliza Macchi.
O custo do Renner, porém, ficou alto com o fortalecimento do profissionalismo. Jogadores do time começaram a interessar a outros clubes – e, assim, passaram a requisitar aumentos de salário.
“Uma agência de publicidade que atendia ao grupo recomendou que fosse investido mais em propaganda na televisão, que havia acabado de chegar ao Rio Grande do Sul. Eles alimentaram a ideia de que o gasto com futebol não fazia sentido”, conta Macchi.
“Uma agência de publicidade que atendia ao grupo recomendou que fosse investido mais em propaganda na televisão. Eles alimentaram a ideia de que o gasto com futebol não fazia sentido”. (Luis Carlos Macchi)
Dificuldades financeiras do grupo, além disso, também jogaram contra. “Anos depois, meu tio me explicou que o programa de exportações não deu certo. Getúlio Vargas [gaúcho, presidente do Brasil de 1930 a 1945 e de 1951 a 1954] era amigo de AJ Renner, e concedia proteções desde o Estado Novo”, relata.
A diretoria do Renner, também dirigente da empresa, foi consultada. E assinou embaixo na decisão de AJ Renner. “Meu tio foi um dos que votaram a favor do fechamento”, lamenta Macchi. No dia 12 de março de 1959, foi decidido o fim do time de futebol.
Uma torcida sem time
Em toda a primeira metade do século 20, o Grêmio jogava na zona norte de Porto Alegre, no estádio da Baixada, no bairro Moinhos de Vento, próximo ao estádio Tiradentes. Em 1954, o clube foi para o Monumental, na zona sul, e então retornou às suas origens com a Arena do Grêmio, em 2012, bem próximo de onde ficava o grupo Renner.
“Por causa do estádio da Baixada, acredito que boa parte da torcida do Renner migrou para o Grêmio”, situa Macchi.
Os cerca de 40 jogadores do elenco foram em sua maioria para o São José, que tinha seu estádio, o Passo D’Areia, no bairro vizinho de mesmo nome – hoje, seu terreno se encontra no bairro Santa Maria Goretti, que foi desmembrado.
Acompanhando o elenco, Macchi chegou a torcer pelo São José, mas o time também paralisou suas atividades momentaneamente nos anos 60. Assim, ele se tornou um gremista em definitivo. “Eu tinha 17 anos”.
Tempos depois, com o projeto Renner Vive, Macchi conheceu alguns outros torcedores que mantiveram preservada a paixão pelo Renner, apesar de terem virado torcedores de outros times – em geral, Grêmio ou Internacional.
“O Renner foi um fenômeno, pela maneira como se formou, como cresceu e como inesperadamente acabou, por decisão do presidente honorário”. (Luis Carlos Macchi)
Se tivesse sobrevivido nessas mais de seis décadas, reflete Macchi, o Renner poderia ser uma terceira força com patamar superior ao São José. Inclusive, superior por exemplo a um América-MG – uma terceira força de outra capital polarizada, entre Atlético e Cruzeiro.
“O Renner tinha mais torcida que o América, lotava estádio sempre”, opina. “Seria difícil estar no tamanho do Grêmio e do Inter, mas teria sim sua representatividade”.
Porém, não era essa a expectativa de seu proprietário. “O AJ Renner investia no esporte porque queria que seus operários tivessem boa saúde e melhorassem a qualidade da produção”, define. Assim, o Renner era um meio, não o fim – quando o futebol virou um instrumento caro, seu dono tirou o time de campo.
Serviço:
Renner Vive
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